No 26ºDomingo do Tempo Comum, o arcebispo de Manaus, cardeal Leonardo Steiner, iniciou sua reflexão afirmando que “o Evangelho a nos apresentar duas pessoas e nelas dois modos de vida, de viver. Um pobre, desvalido, esquecido, maltrapilho, faminto; existencialmente no chão, como que sem chão. Não sabemos como sobrevivia, pois nem migalhas lhe eram permitidas. Temos diante dos olhos um homem, sem valia, desprotegido, apenas protegido e cuidado pelos cães. Um rejeitado da vida, sem eira nem beira”.
Olhos fechados para o outro
Segundo o arcebispo, “ousaríamos dizer como o profeta Isaías: ‘Não tinha aparência nem beleza para que o olhássemos, nem formosura que nos atraísse. Foi desprezado, como o último dos homens, homem de dores, experimentado no sofrimento e quase escondíamos o rosto diante dele; desprezado, não lhe demos nenhuma importância.’ (Is 53,2-3). Nossos olhos conseguem vê-lo na fome, na miséria, no desprezo, mas se fecham quando vemos suas feridas sendo lambidas pelos cães”.
“A deshumanidade nos aterroriza, nos ataca, pode nos tornar insensíveis; ela nos machuca, nos faz sofrer. O afastado e desprezado nos leva a quase descompaixão. E, no entanto, este homem tem um nome: Lázaro. Lázaro que é a expressão de ‘Deus ajuda’, ‘Deus é meu auxílio’. Talvez até possa nascer em nós o desejo de uma prece: Deus vinde em seu auxílio, Deus seja o seu auxílio. E somos conduzidos em nosso olhar meditativo e contemplativo para a morte que conduz à vida: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão”. Da miséria à vida, ao seio, à vida abraâmica, à descendência de Deus. Um abismo, encontro no desencontro”, disse o cardeal Steiner.

Uma narrativa que nos incomoda
Em suas palavras, ele mostrou que “quase nos incomoda a narrativa de Lucas ao contemplar o desprezado e esquecido sendo conduzido à vida da Trindade. Aquele estranhamento de uma vida, não-vida, uma vida não vivida e que se torna vida eterna. Será necessário passar pela não-vida, para entrar na vida eterna?” O presidente do Regional Norte 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB Norte 1), recordou as palavras de Santo Agostinho no Sermão 24,3: “Não foi a pobreza que conduziu Lázaro ao céu, mas a sua humildade. Nem foram as riquezas que impediram o rico de entrar no descanso eterno, mas o seu egoísmo e a sua infidelidade”.
“O outro modo de vida apresentado pelo Evangelho é de uma pessoa que vive vestido com roupas finas e elegantes. Um estilo de vida que circula entorno de si mesmo, no descuido de si. No seu aparecer, na sua aparência tem luxo e elegância falsa. No seu conviver é de festa, prazer diário. Todos os dias no esplendor e no vagar existencial sem relações, sem envolvimento, sem comprometimento. Já não enxerga mais a entrada de sua vida e viver, perdeu o ingresso, a porta do convívio, perdeu os olhos para além de si mesmo. Os convivas são apenas a possibilidade da veste de si mesmo. Existe ele e mais ninguém”, refletiu o arcebispo de Manaus.
Diante disso, o cardeal Steiner sublinhou que “a vida é dom! Ele, no entanto, acaba desprezando a sua vida. Não sabe assumir como dom. Quando dom, está a serviço dos outros, principalmente dos necessitados, dos pobres, que estão à porta do existir. Fechou sua vida à solidariedade, à comunhão, impedindo satisfazer as necessidades mais profundas de sua humanidade: cuidar, partilhar. É apenas desencontro!”

Confundir utilidade com felicidade
Ele recordou as palavras de Papa Francisco à Pontifícia Academia das Ciências Sociais: “Hoje estamos diante de um paradigma dominante, amplamente difundido pelo ‘pensamento único’, que confunde utilidade com felicidade, divertir-se com o viver bem, e afirma ser o único critério válido para o discernimento. Esta é uma forma sutil de colonialismo ideológico. Trata-se de impor a ideologia de que a felicidade consiste apenas no que é útil, nas coisas e posses, na abundância de coisas, na fama e no dinheiro.” Isso mostra “o sabor do dom da vida que se esvai. Perde o gosto de viver, da solidariedade, do amar sem porque, da gratuidade da porta aberta, do encontro com os necessitados”.
O cardeal, seguindo as palavras do profeta Amós na primeira leitura, disse que “fazem ressoar a vida que se perde, se esvazia, se esvai e que acaba desterrada: ‘Ai dos que vivem despreocupadamente em Sião, os que se sentem seguros nas alturas de Samaria! Os que dormem em camas de marfim, deitam-se em almofadas, comendo cordeiros do rebanho e novilhos do seu gado; os que bebem vinho em taças e se perfumam com os mais finos unguentos e não se preocupam com a ruína de José’ (Am 6,4-7)”. Palavras do profeta que o levaram a afirmar: “insensível, viver um mundo à parte, descuidado com a mundo que o rodeia, desligado da graça de pertença à tribo de José. Vida que flutua, desenraizado, sem fonte que satisfaça a sede de viver. Vida destruída, sorvida por si mesma, tomada pelo vazio do viver. Traição!”
O abismo do mim mesmo
“O abismo que se abre na parábola entre os dois modos de viver e que se fecha ao encontro é a inércia, o esquecimento, a indiferença diante daquele que está à porta. O abismo está na indiferença que às vezes atinge a cada um de nós quando somos indiferentes, nos habituamos a ver pessoas famintas, deserdadas e descartadas, somos indiferentes diante da pobreza, da violência, da injustiça. O abismo que vai se formando quando os olhos deixaram de alcançar a porta e quem está à porta, para além da porta do existir. E perdemos a sensibilidade para as chagas que hoje afligem a tantas pessoas”, refletiu o arcebispo de Manaus. Ele citou as palavras de São Jerônimo: “Oh! Quão infeliz és tu entre os homens! Vês um membro do teu corpo prostrado diante da porta e não tens compaixão! Em meio às tuas riquezas, o que fazes do que te é supérfluo?”. Partindo disso, ele afirmou que “o abismo entre os dois modos de viver podem nos atingir, quando perdemos a o tato e olfato para o sofrimento alheio, quando estamos apenas voltados para ‘mim mesmo’, giro em torno de ‘mim mesmo’, vivo para ‘mim mesmo’. Advém a morte, se morre”.
“Do abismo e do encontro no abismo o que vivia para si mesmo pensa nos seus irmãos, que correm o risco de ter o mesmo destino, e pede que Lázaro possa voltar ao mundo para os acordar”, disse o cardeal. Ele recordou a resposta: “Eles têm Moisés e os profetas; que os ouçam!”. Partindo do texto evangélico, ele afirmou que “para nos convertermos, não devemos aguardar acontecimentos prodigiosos, mas abrir o nosso coração à Palavra de Deus, que nos chama a amar a Deus e ao próximo. A desescuta decidiu a sua sorte: ele não quis escutar as interpelações da Palavra e não se deixou transformar por ela. Mesmo os milagres, a ressurreição de mortos, são inúteis, quando não se acolhe a Palavra de Deus”.

A Palavra de Deus a nos iluminar
Recordando o Mês da Bíblia, ele mostrou que “a Palavra de Deus a nos iluminar, conduzir, discernir, cuidar”, citando o texto do Evangelho do dia: “Se não escutam a Moisés, nem os profetas, eles não acreditarão mesmo que alguém ressuscitar os mortos.”
Em palavras do presidente do Regional Norte 1: “a Palavra ensina a amar e a partilhar, é acolhimento e misericórdia. Semeia paz por toda a parte e conduz aos pobres, abandonados, doentes, descartados, os últimos. Caminha com eles. Não existe porta fechada”.
Ele recordou as palavras de Papa Francisco numa Audiência Geral de maio de 2016, onde ilumina nosso modo de viver: “Jesus diz que um dia aquele homem rico faleceu: os pobres e os ricos morrem, têm o mesmo destino, como todos nós, para isto não há exceção. E então aquele homem dirigiu-se a Abraão, suplicando-o com o apelativo de ‘pai’ (vv. 24.27). Portanto, reivindica ser seu filho, pertencente ao povo de Deus. E, no entanto, durante a vida não demonstrou consideração alguma por Deus, ao contrário, fez de si mesmo o centro de tudo, fechado no seu mundo de luxo e de desperdício. Excluindo Lázaro, não teve em conta nem o Senhor, nem a sua lei. Ignorar o pobre significa desprezar a Deus! Devemos aprender bem isto. Ignorar o pobre significa desprezar a Deus! Há um pormenor na parábola que deve ser observado: o rico não tem um nome, mas somente um adjetivo: «o rico»; enquanto o nome do pobre é repetido cinco vezes, e ‘Lázaro’ quer dizer «Deus ajuda». Lázaro, que jaz diante da porta, é uma evocação viva ao rico, para se recordar de Deus, mas o rico não aceita tal evocação. Portanto, será condenado não pelas suas riquezas, mas por ter sido incapaz de sentir compaixão por Lázaro e de o socorrer.”

A Palavra de Deus deseja ser ouvida, guardada, cuidada pelas obras
Ele recordou as belíssimas e animadoras palavras de São Paulo a Timóteo: “procura a justiça, a piedade, a fé, o amor, a firmeza, a mansidão. Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna, para a qual foste chamado e pela qual fizeste a tua nobre profissão de fé diante de muitas testemunhas. (…) guarda o teu mandamento íntegro e sem mancha até a manifestação gloriosa de nosso Senhor Jesus Cristo.” (1Tm 6.11- 16)
Finalmente, o cardeal Steiner disse que “a Palavra de Deus deseja ser ouvida, guardada, cuidada pelas obras, pelo nosso viver, para abrir os olhos e despertar a compaixão para com os pobres no corpo e no espírito. Neles é Jesus que se encontra à porta e deseja as migalhas e se deixa cuidar pelos cães. Lembremos que ele mesmo nos diz: ‘Todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes’ (Mt25,40). No abismo invertido que a parábola nos ensina, se esconde o mistério da nossa salvação, na qual Cristo une a pobreza à misericórdia. Amém”.