
O combate à exploração sexual e ao tráfico de pessoas tem se tornado
uma das prioridades da Igreja católica nos últimos anos, uma bandeira
que tem no Papa Francisco um dos seus principais portadores. Com motivo
do Dia Internacional contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e
Crianças, que acontece todo 23 de setembro, tem acontecido diferentes
seminários ao longo deste final de semana na Amazônia brasileira. Dentre
eles cabe destacar o celebrado em Tabatinga e Manaus.
Muitas vezes essa problemática é vista como algo distante, mas
devemos nos questionar, se fosse alguém que você ama? uma pergunta que
tem sido ponto de partida do 4º Seminário de Enfrentamento ao Tráfico de
Mulheres e Crianças para fins de Exploração Sexual, organizado pela
Arquidiocese de Manaus e a Rede um Grito pela Vida, com o apoio da
Caritas Manaus, que contou com mais de cem participantes. Isso deve nos
levar a assumir as palavras de Dom José de Albuquerque, bispo auxiliar
de Manaus, que insistia em que “não podemos ficar indiferentes, temos
que nos sensibilizarmos”. Para isso, o bispo fazia a proposta de que
esses assuntos estejam “entrem nas pautas de nossas instituições e
paróquias, são coisas que acontecem bem perto de nós”.
No mesmo sentido, o coordenador de Pastoral da Arquidiocese, Padre
Geraldo Bendaham, via a necessidade de “não tornar as pessoas
mercadoria”, numa sociedade que não respeita a dignidade da pessoa. Por
isso, se faz necessário segundo o padre, a importância de “descobrir os
esquemas de exploração para denuncia-los”. Nessa luta, a Rede um Grito
pela Vida, tem um papel em destaque. Dela faz parte a vida religiosa e,
cada vez mais, um bom número de leigos e leigas, como afirmava a Ir.
Rosineuda Rocha, que faz parte da coordenação do núcleo de Manaus.
Falar de tráfico é dizer que essa é uma problemática além fronteiras,
por isso a importância do Seminário da Rede de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas da Tríplice Fronteira, que reuniu mais de 50 participantes
do Peru, a Colômbia e o Brasil, os dias 20 e 21 de setembro, em
Tabatinga – AM. Como também foi reconhecido em Manaus, Verónica Rubi,
uma das coordenadoras da rede, mostrava aos presentes o que é o tráfico
humano e como essa é uma realidade oculta, mas que merece nossa atenção,
pois “se fechamos os olhos nos tornamos cúmplices”, o que levou os
participantes a identificar as situações de morte presentes na região.
Como entender uma sociedade de gente vendendo gente, perguntava a Ir.
Eurides Alves de Oliveira na contextualização da realidade do tráfico
humano. A religiosa definia o tráfico de mulheres e crianças com fins de
exploração sexual como uma “mercantilização dos corpos e da dignidade”,
afirmando que a pessoa se tornou mercadoria de consumo. Desde o ponto
de vista histórico, numa perspectiva amazônica, a professora Iraildes
Caldas Torres, enraizava essa realidade no tempo da conquista
portuguesa, um tempo em que a exploração sexual das mulheres indígenas
se tornou instrumento de dominação, assumido pelos próprios nativos,
relatando situações de homens que oferecia suas filhas e inclusive suas
esposas aos portugueses. Isso foi criando uma consciência de que a
mulher não existe e que elas eram as culpadas da situação, o que
desembocou em que atualmente muitas mulheres, vítimas dessa situação,
não denunciem.
A Igreja está desenvolvendo tanto em nível mundial como local o
combate dessa realidade. A Seção Migrantes e Refugiados, que faz parte
do Dicastério do Vaticano para a Promoção do Desenvolvimento Humano
Integral, publicou Orientações Pastorais sobre o Tráfico de Pessoas,
como apresentava a Irmã Rose Bertoldo, que em abril participou em Roma
de um seminário sobre essa temática e que, coincidindo com a data deste
seminário, tem sido nomeada auditora do Sínodo para a Amazônia pelo Papa
Francisco, em consequência de seu trabalho e conhecimentos sobre o
tráfico humano. Ela dizia que “nós mulheres somos quem mais cuidamos da
vida na Amazônia, da vida humana e do meio ambiente”, questionando aos
presentes com a pergunta: como é que o ser humano pode se satisfazer a
partir da dor de outra pessoa? Ela denunciava que “muitas vítimas não
confiam nas autoridades, na polícia, que muitas vezes acusa em vez de
defender”. A religiosa fazia referência ao encontro que vai ser
celebrado em Roma nesta semana em ocasião dos 10 anos da Rede Talitha
Kum uma das muitas redes eclesiais que favorecem o trabalho de
prevenção, se referindo ao trabalho da vida religiosa e da Cáritas nos
programas de reintegração das vítimas do tráfico humano.
Em nível local, a Igreja católica na região vem desenvolvendo um
importante trabalho, como reconhecia Dom Edson Damian, presidente do
Regional Norte 1 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, e
bispo de São Gabriel da Cachoeira, destacando o grande trabalho da Rede
um Grito pela Vida. Ele parabenizava as muitas mulheres presentes no
seminário, de quem destacava sua coragem, que etimologicamente significa
agir com o coração. O bispo falava da sua diocese, “uma região de
fronteira onde tudo é permitido, onde tudo é possível”, recordando
muitas palavras do Papa Francisco em referência ao tráfico e destacando
um grande número de mulheres que estarão presentes na assembleia do
Sínodo para a Amazônia, dentre elas várias representantes do combate a
essa problemática.
Nesse trabalho local, o Padre Geraldo Bendaham, destacava a
importância da Campanha da Fraternidade de 2014, com o tema:
Fraternidade e Tráfico Humano, que provocou um ampla ressonância dentro e
fora da Igreja. Algumas consequências dessa campanha foi o Seminário
Internacional celebrado em Manaus em 2015 ou o conteúdo da X Assembleia
Pastoral da Arquidiocese, em 2018, que faz um planejamento para quatro
anos, onde aborda essa questão ao falar sobre a superação da violência.
Desde a Cáritas Arquidiocesana de Manaus estão se desenvolvendo, em
parceria com a Rede um Grito pela Vida, ações de prevenção,
sensibilização e combate ao tráfico humano, como relatava Rosivane Souza
dos Anjos, psicóloga da instituição, especialmente a través do projeto
Iça.
Esse fenómeno “reveste-se de uma perversidade tamanha”, afirmava Dom
Sérgio Castriani, arcebispo de Manaus, que definia a quem faz parte da
Rede um Grito pela Vida como “mulheres comprometidas com a justiça
social e com os pobres. Mas sobretudo misericordiosas”. Ele enfatizava
que “uma sociedade que admite a exploração sexual de uma criança é uma
sociedade doente que admitirá outras barbaridades também”. Ele agradecia
a quem enfrenta essa problemática, algo que nasce “da experiência de fé
e do seguimento de Jesus em comunhão com a sua Igreja, da qual nem
sempre recebem todo o apoio que necessitam e merecem”.
Na região da Tríplice Fronteira, a Igreja combate a rede de morte que
tem se instalado nesse local, que segundo o jesuíta Valério Sartor, tem
o dinheiro no centro e tem se instalado na realidade social, a partir
da lógica do mercado, incentivada pela globalização e os meios digitais.
Essa é uma realidade que precisa de pautas que ajudem na ação em defesa
da vida, apresentadas por Marta Barral, algo que segundo ela “começa em
cada um e cada um de nós” e que precisa que “acreditemos em nossa
dignidade e nossos direitos como pessoas”, insistindo em que o
enfrentamento ao tráfico de pessoas e a defesa da vida não pode ser
feito individualmente, “precisamos nos organizarmos em redes”. Essas
redes de proteção precisam da parceria de diferentes atores sociais e
eclesiais e a formulação de compromissos concretos que possibilitem uma
melhor atuação.
Desde o mundo político, Elias Emanuel, vereador de Manaus pelo PSDB,
que se fez presente no seminário, referia-se ao acontecido na
legislatura passada da câmara municipal, em que foi aberta uma frente
parlamentar sobre esse tema, algo que precisa ser reavivado. Para isso
vê necessário “trabalhar um plano municipal no enfrentamento do tráfico
de crianças e mulheres para a exploração sexual, que deve ser construído
com várias políticas”, insistindo em que a câmara “tem que induzir a
participação da assistência social, da educação, da saúde, do esporte,
de várias políticas em torno dessa questão, pois se a gente não tiver
essa intersetorialidade, nós não teremos efetividade nessa ação de
combate”.
O deputado Federal José Ricardo Wendling, também presente, denunciava
que “nós estamos vendo um retrocesso na política nacional de direitos
humanos”, o que faz ainda faz mais difícil enfrentar esse problema, dado
“o desmonte de certas estruturas públicas” por parte do governo, o que
segundo o deputado do PT, “amplia a necessidade da sociedade civil ser
uma voz mais protagonista”, que precisa “pressionar mais o poder
público”, que deixou de fazer funcionar a rede de proteção às crianças.
Segundo o deputado, tendo em conta que o tráfico de pessoas continua
forte, “se o governo flexibiliza, fragiliza suas ações de enfrentamento,
logicamente o quadro vai permanecer”, repetindo a necessidade da
“sociedade pressionar o poder público a fazer sua parte”.
No combate ao tráfico de pessoas participam diferentes instituições
do poder público. Um deles é o Ministério Público do Trabalho, que a
través de uma das Procuradoras, Alzira Melo Costa, relatava diferentes
casos, sobretudo no interior do estado, onde as poucas oportunidades,
fazem com que o povo se encante. Ela pedia da Igreja, que sobretudo no
interior do estado tem uma importância fundamental na construção de
políticas públicas e na defesa dos direitos humanos, que ajude as
pessoas a se perguntar, a cobrar, a ter um olhar atento e diferenciado, a
fazer um trabalho de prevenção. Ao mesmo tempo reconhecia que os cortes
e desmonte dos direitos sociais, cada vez mais presentes no Brasil, tem
como consequência que no estado do Amazonas, só tem 12 procuradores
para todo o estado e todos ficam na capital.
O Brasil e o país de Sul América com maior incidência nesse campo,
afirmava Márcia Maria Cota do Álamo. Segundo dados oficiais, entre 2012 y
2016, cada 4 hora foi contabilizada uma vítima desse crime, mas os
números são bem maiores, segundo a advogada, pois muitos casos não são
registrados. Não podemos esquecer que o tráfico de pessoas é mais
lucrativo do que o tráfico de drogas, com um lucro de 32 bilhões por
ano, uma escravidão de correntes invisíveis que tem múltiplas causas no
Brasil, o quarto país do mundo em casamento infantil, o sexto em
exploração sexual e o terceiro em tráfico de mulheres, o que demanda uma
maior cobrança aos gestores, para quem não é prioridade proteger as
pessoas, segundo Márcia Álamo, que destacava que ao longo da história,
no Amazonas mais de trezentas mil mulheres indígenas já foram capturadas
para a prostituição. Por isso, ela insistia na necessidade de políticas
de estado e não só de governo.
Desde a Defensoria Pública da União, Lígia Prado da Rocha, enumerava
os marcos normativos nacionais e a política nacional de enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, que “muitas vezes fica só no papel, falta
assistência às vítimas”, como se demonstra no fato de que no estado do
Amazonas deveria ter 13 postos avançados de atenção às vítimas
espalhados por todo o estado e só tem um em Manaus, o que a leva a
denunciar que “o estado não está implementando as políticas”. Também
relatava a situação dos migrantes ilegais que quando são vítimas do
tráfico não denunciam, sem conhecer que a lei garante sua regularização
no país quando são vítimas dessa situação.
A problemática do Tráfico de Pessoas, demanda, como foi relatado no
Seminário realizado em Tabatinga a importância de se articular em rede
diante de um sistema capitalista que procura o lucro, especialmente na
Amazônia, empobrecendo os direitos e explorando os recursos, materiais e
humanos, e gerando necessidade de possuir. Isso se agrava diante da
situação política, onde a extrema direita cada vez tem mais auge, a
corrupção. As consequências são a violência, o êxodo às grandes cidades,
o turismo que prostitui as culturas locais, diante da ineficácia
policial e a criminalização dos delitos. Tudo isso incrementado diante
da ausência de mecanismos de controle nas comunidades.