“Ter de
resisti à dor, à dor.
Sem
compreender por que à dor, à dor.
Ter de
suportar viver à dor, à dor.
E sem
merecer à dor, à dor.
Se é
esse o meu destino, quem é o algoz que me traçou.
Quem me
contaminou.
Quem me
doou a dor.” (Milton Nascimento)
A dor e
a revolta que afloram quando os olhos são agredidos pelas fotografias de
crianças Yanomami esqueléticas, meio moribundas, lembrando as imagens da Biafra
e do Holocausto! Humanos, esqueletos ambulantes, quase esquecidos dos passos. Aquelas
imagens do passado acusavam a nossa desumanidade, a incapacidade de
compadecimento, a perda da alma. As imagens de hoje a denunciar a segregação, a
injustiça, a morte lenta de um povo, a perda de nossa alma. Alma no dizer do
poeta: “quando a alma não é pequena”. Tudo pela ideologia do mercado, do
dinheiro: ouro. O ser humano que ali habita não conta. São envenenados.
Como lembra Davi Kopenawa:
“Os Yoanomami nunca morreram de fome. Estou aqui, tenho 66 anos e quando era
pequeno, ninguém morria de fome. Agora o garimpo está matando o meu povo e também
os parentes Munduruku e Caiapó. Quando os indígenas ficam doentes, eles não
conseguem trabalhar ou caçar.” Eis a causa da desnutrição, da morte. É pouco
dizer do descaso das pessoas responsáveis pelos órgãos que deveriam preservar
as terras, as águas, a “casa”, a cultura, a vida dos povos indígenas. As mais
de 500 crianças mortas clamam por justiça! A justiça poderá resgatar a alma da
nossa humanidade, da indiferença e agressão em relação aos que aqui habitavam antes
da chegar dos europeus.
Os bispos do
Regional Norte I da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, manifestaram a
sua indignação e solidariedade: “estarrecidos e profundamente indignados,
estamos vendo as imagens dos corpos esqueléticos de crianças e adultos do Povo
Yanomami no Estado de Roraima, resultado das ações genocidas e ecocidas do
Governo Federal anterior, que liberou as terras indígenas já homologadas para o
garimpo ilegal e a extração de madeira, que destroem a floresta, contaminam as
águas e os rios, geram doenças, fome e morte. Mais de 570 crianças já perderam
a vida.” (Presidência CNBB Norte I)
Com Milton
Nascimento repetimos a pergunta acusatória: “quem é o algoz que me traçou. Quem
me contaminou. Quem me doou a dor.” As imagens não podem percorrer as trilhas
do esquecimento e da indiferença. A dor é grande demais para que as autoridades
e a sociedade brasileira se deixem tomar pelo momento e depois ingresse no
tempo de um passado esquecido. Há necessidade urgente de responsabilização! A
quanto tempo se está a denunciar a situação dos povos indígenas, a quanto tempo
os indígenas a clamar por direito de viver e, no entanto, ignorados pelas
autoridades e mesmo pelos grandes meios de comunicação. Como se não fosse
Brasil, como se não fossem pessoas, como se não fossem filhos e filhas de Deus.
Ou como diz o poema de Nascimento: “Homem não existe para ser só animal. A sua
história é mais que corporal.”
A
esperança a guiar nossos desejos e propósitos, o horizonte da convivência e
dignidade. Esperança, pois vemos que os indígenas assumem o Ministério e os Órgãos
que devem estar a serviço desses povos. Esperança de que o Supremo Tribunal
Feral julgue o quanto antes a RE 1.017.365 de repercussão geral. Indefinição sobre
marco temporal abre brecha para perseguir lideranças indígenas, invasões,
violência, morte… Vale lembrar que não é eles ou nós, nem eles e nós. Somos Yanomami E Nos!
Cardeal Leonardo Steiner
Arcebispo de
Manaus